❓Scriptio Continua: Pode uma tradução ser realmente fiel? ausência de pontuação pode interferir em uma tradução.

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O que não enxergamos nas palavras que já vêm separadas, acentuadas e pontuadas
Quando lemos a Bíblia em português — ou em qualquer idioma moderno — raramente nos damos conta de que o texto original, especialmente do Novo Testamento, não possuía acentos, espaços ou pontuação. As palavras eram escritas todas juntas, em letras maiúsculas, em um fluxo contínuo de texto, conhecido pelos estudiosos como scriptio continua.

Vamos fazer um estudo comparativo usando Marcos 1:1, um versículo simples, direto e representativo do início dos evangelhos canônicos.

Texto do manuscrito antigo (sem acento, em scriptio continua):

ΑΡΧΗΤΟΥΕΥΑΓΓΕΛΙΟΥΙΗΣΟΥΧΡΙΣΤΟΥΥΙΟΥΘΕΟΥ

Esse texto é como aparece, por exemplo, em manuscritos como o Codex Vaticanus ou o P75.

Texto com acentuação (grego politônico, moderno ou crítico):

Ἀρχὴ τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ, Υἱοῦ Θεοῦ.

Tradução correta (em português):
“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.”

Um tradutor que trabalha com o grego koiné sem acentos (como no manuscrito acima), faz o seguinte processo:
1. Segmentação do texto
Sem espaços, ele precisa identificar onde começam e terminam as palavras:


ΑΡΧΗ ΤΟΥ ΕΥΑΓΓΕΛΙΟΥ ΙΗΣΟΥ ΧΡΙΣΤΟΥ ΥΙΟΥ ΘΕΟΥ
2. Reconhecimento morfológico
Mesmo sem acentos, o tradutor experiente reconhece as formas gramaticais:

ΑΡΧΗ – “princípio” (substantivo no nominativo singular)

ΤΟΥ ΕΥΑΓΓΕΛΙΟΥ – “do evangelho” (genitivo singular)

ΙΗΣΟΥ ΧΡΙΣΤΟΥ – “de Jesus Cristo” (genitivo)

ΥΙΟΥ ΘΕΟΥ – “Filho de Deus” (também no genitivo, indicando posse ou relação)

3. Reconstrução sintática
Com base na morfologia e contexto, o tradutor reordena mentalmente as partes e dá sentido coerente:

“Princípio” → sujeito da frase

“do evangelho de Jesus Cristo” → complementos do sujeito

“Filho de Deus” → explicação adicional (apposição)

4. Aplicação de pontuação e estilo
O tradutor decide, com base na gramática e no estilo da língua de chegada, onde colocar vírgulas, pontos e como ordenar as palavras. Em português, geralmente segue esta ordem mais clara:

“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.”

Vamos Continuar

Essa forma de escrita colocava nas mãos do leitor — e posteriormente do tradutor — a tarefa de decifrar o que está escrito, onde começa uma frase, onde termina outra, e o que exatamente se quis dizer. Em outras palavras, antes da tradução, já havia interpretação.

Diante disso, surge uma pergunta central: é possível que uma tradução, por mais bem-intencionada e cuidadosa que seja, seja totalmente fiel ao original? Ou será que, ao separar palavras, inserir vírgulas e escolher termos equivalentes em outra língua, o tradutor também decide parte do sentido do texto?

Compreender esse processo não é apenas uma curiosidade técnica, mas uma chave para ler as Escrituras com mais profundidade, consciência e respeito pela sua origem.

“As inscrições mais antigas e papiros mostram poucos sinais de pontuação entre frases ou cláusulas em uma frase, embora a pontuação com o uso de sinais apareça em algumas antigas inscrições. No papiro de Ártemis, os dois pontos (:) ocasionalmente terminam a frase. Credita-se a Aristófanes de Bizâncio (260 A.E.C),  a invenção de um sistema regular de pontuação na oração que foi desenvolvido pelos gramáticos alexandrinos. Como regra, todas as frases, bem como as palavras, eram ligadas umas às outras de forma ininterrupta  (scriptura continua), mas finalmente foram providenciadas três paradas para a frase pelo uso do ponto. O ponto no topo da linha (. ) ( stigmh teleia, ‘ponto alto’) era um ponto final;   sob a linha (.) (hipostigmh) era igual ao nosso ponto-e-vírgula, enquanto um ponto médio (stigmh mesh) era equivalente à nossa vírgula. Mas mudanças graduais vieram sobre essas pontuações até que ficaram igual ao nosso “dois pontos”, o ponto inferior tornou-se o ponto final, o ponto médio desapareceu, e por volta do 9º século  A.D. a vírgula (,) tomou seu lugar. Por volta desse tempo também surgiu o ponto de interrogação (;) ou Ερωτηματικό. Estas pontuações diferiram do stikoi uma vez que eles diziam respeito ao sentido da sentença. Alguns dos mais antigos MSS. do N.T apresentam estas pontuações até certo ponto. B [Codex Vaticanus] tem o ponto mais alto como um ponto final, o ponto mais baixo é uma pausa mais curta.” A.T Robertson e,  A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research, pag. 242 . Compare W.H.P. Hatch, The Principal Uncial Manuscripts of the New Testament (Chicago: University of
Chicago Press, 1939).

Tradução sempre envolve interpretação

e isso pode causar tendência.

Isso acontece por 3 motivos principais:

1. A gramática grega não se traduz 1:1 para outras línguas

O grego koiné tem uma flexibilidade sintática enorme, graças à sua estrutura casual (caso nominativo, genitivo, acusativo, etc.). Isso permite, por exemplo, que palavras mudem de ordem sem alterar o sentido — coisa que o português ou o inglês não permitem com tanta liberdade.

Exemplo:

“Ἰησοῦ Χριστοῦ” = pode ser “Jesus Cristo”, “de Jesus Cristo”, ou até “Jesus, o Cristo”, dependendo do contexto e do caso gramatical.

Um tradutor precisa interpretar a função gramatical e escolher a melhor forma de expressá-la — mas isso abre espaço para variações ou tendências teológicas.


2. A pontuação no grego antigo é ambígua ou inexistente

Como vimos, não havia vírgulas, pontos ou aspas nos manuscritos originais. Isso significa que o tradutor precisa decidir onde termina uma ideia ou onde começa outra, com base apenas no contexto.

Isso afeta o sentido doutrinário em vários casos, como por exemplo:


Lucas 23:43

Jesus na cruz diz ao ladrão:
Grego sem pontuação:
ἀμὴν λέγω σοι σήμερον μετ’ ἐμοῦ ἔσῃ ἐν τῷ παραδείσῳ

Agora veja duas traduções possíveis, dependendo da vírgula:

  1. “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso.”
    ➜ Lê-se que hoje ele estará no Paraíso.
  2. “Em verdade te digo hoje, estarás comigo no Paraíso.”
    ➜ Lê-se que Jesus está falando hoje, mas a ida ao Paraíso pode ser em outro momento.

Só uma vírgula muda a teologia da morte e do Paraíso.


3. Influência cultural e teológica do tradutor

Nenhuma tradução é completamente neutra. Cada tradutor carrega:

  • a teologia do seu tempo (católica, protestante, ortodoxa…)
  • as regras da língua de destino
  • o estilo e sonoridade exigidos pelo público-alvo

Isso gera tendências diferentes:

VersãoTendência percebida
Almeida Revista e CorrigidaMais literal, protestante, clássica
NVI (Nova Versão Internacional)Fluente, moderna, mais interpretativa
Bíblia de JerusalémEstilo católico, poético, notas críticas
Tradução do Novo MundoCom influências doutrinárias específicas (Testemunhas de Jeová)

✔️ A tradução não é só técnica, ela é interpretativa e sensível à cultura, pontuação, gramática e teologia.

Por isso, ler o texto no grego original, mesmo que com auxílio, é um poderoso antídoto contra interpretações tendenciosas.
Obrigado

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